tradutor
quinta-feira, 5 de abril de 2012
Senjai, um o-henro diferente (escrito no 2 de abril)
Konichiwa!
Hoje andei 28 km. O caminho transcorreu o tempo todo às margens da rota 55, tendo à minha direita montanhas com densas florestas subtropicais e à minha esquerda o oceano Pacífico. Um dia de sol, um pouco frio pela manhã, poucos carros, bom para caminhar. Meu joelho esquerdo, que tem reclamdo um pouco depois das subidas e descidas nas montanhas, agradeceu os dois dias de descanso no Ikumi minshuku e comecei o dia bem disposto. A pausa foi boa para o corpo porem me senti um pouco desconectado no inicio. Passei dois dias sem andar, num minshuku com ambiente de praia se surf e falando inglês. Bem diferente da vida de o-henro que estava levando. Então demorei um pouco para me reconectar. Esqueci de não bater o cajado nas pontes (gomen nasai, Kobo Daishi...), cumprimentei uns velhinhos em inglês que me olharam sem entender nada, e pouco a pouco fui reconectando-me.
Com uma hora de caminhada crucei com dois o-henros. Um que estava andando na direção contraria. Ou seja em reverso, no sentido anti-horário. Tenho encontrado a cada dia um ou dois o-henros andando nessa direção. Dizem que em ano bissexto fazer o caminho em reverso da sorte. Deve ser dificil achar o caminho em alguns trechos ja que as placas indicam o caminho na direção do sentido dos ponteiros do relógio. O outro o-henro, que soube depois seu nome era Senjai, andava na direção normal. Parei para comprimentar e praticar minhas 3 ou 4 palavras de japonês e Senjai, que falava um inglês bastante razoável, me perguntou se queria andar junto um pouco. Ok, falei. Andamos juntos umas 3 horas. Soube então que Senjai tem 57 anos (embora parecesse bem menos), é do norte do Japão e trabalhou por muitos anos na industria automoblística. Até que foi demitido e nunca mais voltou a encontrar em emprego. E assim ficou sem grana e sem casa. E foi morar na rua ja tem varios anos. Só que não é um morador de rua qualquer. Começou a estudar meditação e conhece profundamente do assunto. Também aprendeu a comer o que a natureza oferece e sabe identificar ervas comestíveis, frutas do mato, bebe agua das montanhas e anda com a grana que consigue através de esmolas. E vive com o que tem: uma mochila onde carrega suas roupas, uma barraca, saco de dormir, fogareiro para cozinhar e vai saber mais o que. Está em Shikoku ja faz um bom tempo, dando sua 9na volta seguida! Isso significa que Senjai ja andou mais de 10.000 km. E está em busca da iluminação. Arma sua barraca, toma banho nos postos de gasolina, e ja deve ter passado alguns invernos por aqui, que apesar de estarmos num clima ameno do que Toquio, é bem frio. Tem horas que agradeço ter passado pela experiência de ter andado no caminho de Santiago antes de vir ao Japão. Lá aprendi muito sobre os limites do meu corpo e andar no meu ritmo, também a me preparar psicologicamente para andar longas distancias e, mais do que isso, a encontrar personagens como Senjai, que escolheram levar um estilo de vida diferente. Do seu jeito. E aprendi a olhar essas pessoas de igual para igual. E arespeitar suas escolhas desde que respeitem as minhas. No caminho de Santiago encontrei gente muito legal que escolheu seguir um caminho bem particular e respeita o dos outros. Mas também encontrei outros que escolhem caminhos diferentes e se mostram pouco respeitosos com as escolhas dos outros e vivem dando lições de moral, parecendo ser os donos da verdade sobre o caminho de Santiago, sobre a vida ou sobre o que quer sejae, julgando quem é um "bom" peregrino e quem não, quem é boa pessoa e quem não. Desses aprendi a me afastar logo, cumprimentando e dizendo respeitosamente que preferia andar sozinho. Mas Senjai não era desse tipo. Ele escolheu seu caminho mas nas 3 horas que andamos juntos não tentou me convencer de nada nem se achava dono da verdade. Quando chegamos numa pequena vilas de pescadores paramos para fazer um lanche. Eu dividi com ele umas frutas e pão que trazia na mochila e ele comprou cafe. Durante o lanche perguntei sobre a familia. Ele não é casado nem tem filhos. Tem um irmão mais velho e uma irmã mais nova. E quando perguntei pelos pais senti que o clima da conversa mudou. Faz 5 anos que não fala com a familia. Ele disse que ter ficado desempregado, sem grana e sem casa é uma desonra no Japão. Significa ter fracassado na vida. Especialmente para os homens. E é assim que muitos homens acabam indo morar na rua com 50 anos ou mais. Mesmo estando casados e com filhos. Largam tudo. Preferem isso a ir buscar ajuda nos pais ou outros familiares. E como a economia japonesa ja tem varios anos de muito baixo ou nenhum crescimento, o número de homens que acabam indo morar sozinhos na rua tem aumentado muito. Vi isso emToquio nos dois dias em que andei por lá e cheguei a comentar num texto. Para as mulheres é diferente. No caso de passar por essa situação podem ir buscar ajuda e moradia com seus pais. Para os homens buscar essa ajuda é como uma desonra. E essas questões de honra são muito fortes por aqui. Faz parte da cultura. Para ficar bem clara a situação, Senjai tem 5 anos que não fala com ninguém da familia. Nem sequer sabe se os pais estão vivos ou não. Eu acolhi tudo isso na boa. Não é minha cultura e eu não estou aqui para dizer se isso é certo ou errado. E muito menos sentir pena, um sentimento que para mim é das coisas mais arrogantes. Qualquer um de nós pode estar fragilizado por algum motivo e estar precisando de ajuda. Nessas horas sentir pena do outro é, na minha opinião, a pior maneira de ajudar. Ou a melhor maneira de fragilizar mais essa pessoa. Mas, voltando a Senjai, o fato de eu não ser japonês e ser pai detrês filhos, coisa que Senjai não é, me permitiu entrar no tema e dar minha opinião. Falei para ele que se um filho meu fosse passar por essa situação eu acolheria e ajudaria. E então perguntei para ele qual seria a reação dos pais dele caso ele pedisse ajuda. E ele disse que os pais provavelmente iam ajuda-lo. Ele me disse que de qualquer maneira ele tinha uma tarefa agora, que era buscar a iluminação. E que depois de alcançar a iluminação iria então voltar a entrar em contato com sua família. Quando ele disse isso acendeu um sinal dentro de mim que fez perguntar para ele se não tinha considerado a possibilidade mudar a ordem, e que talvez voltar a fazer contato com os pais poderia ser um passo previo para ele alcançar a iluminação. Não sei de onde isso saiu mas foi bem de dentro de mim. E percebi que Senjai ficou em silêncio e não falou nada. Depois disso nossa conversa acabou e nos despedimos e cada um seguiu seu caminho.
Esclareço que Senjai é uma pessoa muito inteligente, muito educado e em toda nossa conversa mostrou estar muito centrado. Antes de me despedir perguntei se podia tirar uma foto com ele mas ele me respondeu com muita delicadeza que não gosta de tirar fotos. Essas coisas se respeitam.
Não é todo dia que eu encontro uma pessoa que trabalha arduamente durante anos para alcançar sua iluminação. E para quem, como eu, entrou na etapa da peregrinação onde se busca a disciplina e a austeridade, Senjai é um grande exemplo dessas qualidades.
Arigatou gozaimazu, Senjai san!
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Muito rico seu relato deste contato.
ResponderExcluirEm certos trechos me emocionei ao perceber o quanto que a sociedade muitas vezes dá em suas diferentes culturas um movimento dentro dos individuos que ficam "colados" e que acabam fazendo parte de um trabalho muito interior de desapego ou de perseverança trazendo às vezes o EGO em evidência.
Acho que já te falei que todas as quartas feiras estamos estudando o Yoga de Patanjali e nestas duas ultimas quartas estamos estudando como funciona e se relacionam a mente, o intelecto e os sentidos junto com o "Eu" interior.
Está interessante e tem um exemplo que quero compartilhar contigo (acho que até já falei por aqui quando você falou da saudade de seus filhos sobre o exemplo da carruagem ), pois estou estudando profundamente como tudo isto funciona dentro de mim.
Ainda mais antigo, o Katha Upanishad da tradição hindu nos diz: "Saiba que o ser é o passageiro e o corpo, a carruagem; que o intelecto é o cocheiro e a mente, as rédeas". "Os sentidos, diz o Sábio, são os cavalos, as estradas que percorrem são os labirintos do desejo".
Nessa bela alegoria oriental podemos observar que, pelo menos, o cocheiro (o intelecto - veículo do pensamento concreto - alma arrogante) e os cavalos (os sentidos - "instrumentos" das sensações - alma apetitiva) são seres que têm vida própria, ou vontade própria, independente da vontade do passageiro (o Ser - o Eu Superior - a alma inteligível, causa do pensamento abstrato).
Metáfora da Carruagem
Dono = Atman / Self / Si Próprio:
Condição intrínseca, profunda do ser humano
Condutor = Budhi / Inteligência:
Conhecimento intuitivo,discernimento
Rédeas = Manas / Mente:
Faculdade mental consciente,emoções
Cavalos = Indriyas / Sentidos:
Forças sensoriais
Carruagem = Sharira / CorpoCampo = Objetos de Percepão:
O lugar onde se caminha
Um grande AGRADECIMENTO ao Sr. Senjai pelos ensinamentos de Hoje e que ele possa encontrar Seu Caminho
Namastê e boa caminhada
Silvio
Que lindo relato! A força das origens sempre nos guiando... bjos Gi
ResponderExcluirLindo mesmo! Bom, estou comentando algumas coisas, deixa eu me apresentar, sou amiga da Gi aqui do escritório, ela me contou da sua peregrinação e comecei acompanhar o seu blog que simplesmente não consigo parar de ler e sempre espero por mais notícias da terrinha dos meus avós. Arigatou gozaimashita.
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